quinta-feira, 26 de maio de 2016

Sobrevida

Disseram que eu estava morto.

A história circulava entre pessoas próximas que relutavam em me contar pessoalmente. Mas palavras não são tudo e através dos olhares e sorrisos frios eu intuía as fofocas obscuras que vez ou outra percorriam as gargantas carregadas de saliva, fumaça e álcool.

Eles diziam que eu estava morto.

A corrente foi exposta por uma antiga amante. Ela me telefonou em um dia qualquer e perguntou sobre como ia a vida. A vida ia como vai qualquer uma. Você acorda de manhã, dá graças a deus por não ter filhos, faz o que precisa fazer para sobreviver, lê o jornal para fingir que liga sobre a merda mais atual que está acontecendo no mundo e arruma qualquer compromisso no fim de semana para ocupar o seu vazio. Se der sorte, transa duas ou três vezes na semana. Com muita sorte, você faz isso com alguém especial. Se der azar, se vê obrigado a não foder ninguém. Com muito azar, tem que trepar todos os dias.

Por isso eu respondi que a vida estava boa. Tão bem quanto poderia estar, obrigado por perguntar. Do outro lado da linha ouvi a risada sarcástica escapando por entre seus dentes perfeitamente brancos. A mesma risada irritante de quando discutíamos. Como de costume, sua expressão facial tomaria o aspecto tenebroso que fez com que nosso relacionamento não durasse seis meses. As narinas estariam dilatadas, a sobrancelha esquerda levantada, os dentes à mostra em sinal de desafio. De anjo à demônio com apenas um sorriso. Em resposta, eu já ensaiava um insulto estúpido que só ela arrancava. Mas ela não me deu tempo.

Não pode estar bem. Dizem que você está morto, ela falou. Dizem muita merda, respondi. E não ligo para o que qualquer pessoa fala sobre mim. Deveria ligar, porque são pessoa próximas que te conhecem bem. Mas eu não ligo do mesmo jeito, respondi por fim e desliguei o telefone.

Foi a última vez que falei com ela, ou com qualquer pessoa que as leis sociais não me obriguem. Diariamente acordo e olho para o criado mudo antes de começar o dia. 75 miligramas de Venlift, 300 miligrama de Bupropiona, a caixa de Rivotril esperando o cair da noite.

Me convenço de que mortos não tomam remédio, e existo por mais um dia.

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Para lembrar que o blog vive. E, mesmo que esse não seja o caso, os mortos também tem suas palavras.