domingo, 18 de setembro de 2011

[Bestiário Carioca] O Sambista Indigente


Habita os subúrbios do Rio de Janeiro uma espécie conhecida como sambista indigente. Os exemplares não são numerosos, o que já levou muitas vezes à conclusão equivocada de que a espécie estaria extinta. Entretanto, os espécimes existentes não costumam prezar pela discrição e deixam bem remarcado seu espaço social na fauna carioca. Acrescente-se que os sambistas indigentes fazem jus à fama de vaso ruim e sua vida longa compensa sua baixa taxa de reprodução.

O sambista indigente é comumente encontrado em qualquer ocasião social com seu tradicional blusão de mangas curtas. Na hierarquia dos botões, encontra-se algumas casas abaixo do pastor evangélico, do almofadinha e do cobrador de ônibus, isto é, com o decote da camisa aberto até a altura do umbigo. Longe de individualizar a espécie em questão, a característica é vista em diversas outras, tratando-se, sem dúvida, de uma adaptação evolutiva para suportar as temperaturas do quinto dos infernos - na amável expressão da querida rainha.

Por ser difícil o reconhecimento da espécie em questão, o sambista indigente é muitas vezes confundido com outra espécie do mesmo gênero, o alcoólatra anônimo. Mas este costuma ser desempregado ou, algumas raras vezes, equilibra-se em um emprego e aquele, por sua vez, está invariavelmente na posição intermediária, a de funcionário público.

Espécie de sensibilidade ímpar, o sambista indigente sofre o efeito das estações do ano, mudando de repartição a cada trimestre. Sua explicação para o fenômeno é a desdita da vida. A dos colegas e dos chefes, que chegam a praguejar contra a estabilidade do funcionalismo público, é a insuportável chatice do sujeito.

O sambista indigente, como o próprio nome da espécie permite antever, é um poeta não reconhecido. Seu talento nato para versar inclui as improváveis rimas de “amor” com “dor” e de “paixão” com “coração”. Suas composições situam-se em um curioso ramo do samba-exaltação mais voltado para o pelassaquismo. São comuns as letras em homenagens à sogra, ao chefe ou um dissonante improviso poético em honra do ouvinte da ocasião. Mas os motivos tratados são bem abrangentes, o sambista indigente é capaz de versos louvando Jesus Cristo, o Louro José e a bunda da vizinha. Às vezes, em uma mesma música.

Os seres desta espécie nunca perdem a oportunidade de mostrar ao mundo sua nova música de trabalho. Todos os conhecidos já tiveram a terrível experiência de ouvir uma de suas melodias acompanhadas do batuque da caixa de fósforos pela metade (o cigarro, pelo bem da música, só é aceso no isqueiro dos outros para não desafinar o instrumento).

Aqueles que se revoltam contra as rimas óbvias e letras de gosto duvidoso são imediatamente taxados de invejosos por esta curiosa espécie artística, aumentando sua certeza de talento diante da incompreensão demonstrada pelo mundo. Não há um só sambista indigente que, em defesa da qualidade de sua própria obra, não seja capaz de jurar de pés juntos que já foi plagiado pelo Jorge Aragão ou pelo Arlindo Cruz.

Por fim, aspecto muito controverso sobre a espécie, defendido por uns e negado por outros, é uma eventual e gradual evolução através das gerações para uma outra, a dos funkeiros de youtube. Observar as interações entre os indivíduos das duas espécies só aumenta a controvérsia científica sobre a proximidade genética: eles se observam, se cheiram, se bicam e se mordem, mas nada de se acasalarem.

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