Habita os subúrbios do
Rio de Janeiro uma espécie conhecida como sambista indigente. Os
exemplares não são numerosos, o que já levou muitas vezes à
conclusão equivocada de que a espécie estaria extinta. Entretanto,
os espécimes existentes não costumam prezar pela discrição e
deixam bem remarcado seu espaço social na fauna carioca.
Acrescente-se que os sambistas indigentes fazem jus à fama de vaso
ruim e sua vida longa compensa sua baixa taxa de reprodução.
O sambista indigente é
comumente encontrado em qualquer ocasião social com seu tradicional
blusão de mangas curtas. Na hierarquia dos botões, encontra-se
algumas casas abaixo do pastor evangélico, do almofadinha e do
cobrador de ônibus, isto é, com o decote da camisa aberto até a
altura do umbigo. Longe de individualizar a espécie em questão, a
característica é vista em diversas outras, tratando-se, sem dúvida,
de uma adaptação evolutiva para suportar as temperaturas do quinto
dos infernos - na amável expressão da querida rainha.
Por ser difícil o
reconhecimento da espécie em questão, o sambista indigente é
muitas vezes confundido com outra espécie do mesmo gênero, o
alcoólatra anônimo. Mas este costuma ser desempregado ou, algumas
raras vezes, equilibra-se em um emprego e aquele, por sua vez, está
invariavelmente na posição intermediária, a de funcionário
público.
Espécie de
sensibilidade ímpar, o sambista indigente sofre o efeito das
estações do ano, mudando de repartição a cada trimestre. Sua
explicação para o fenômeno é a desdita da vida. A dos colegas e
dos chefes, que chegam a praguejar contra a estabilidade do
funcionalismo público, é a insuportável chatice do sujeito.
O sambista indigente,
como o próprio nome da espécie permite antever, é um poeta não
reconhecido. Seu talento nato para versar inclui as improváveis
rimas de “amor” com “dor” e de “paixão” com “coração”.
Suas composições situam-se em um curioso ramo do samba-exaltação
mais voltado para o pelassaquismo. São comuns as letras em
homenagens à sogra, ao chefe ou um dissonante improviso poético em
honra do ouvinte da ocasião. Mas os motivos tratados são bem
abrangentes, o sambista indigente é capaz de versos louvando Jesus
Cristo, o Louro José e a bunda da vizinha. Às vezes, em uma mesma
música.
Os seres desta espécie
nunca perdem a oportunidade de mostrar ao mundo sua nova música de
trabalho. Todos os conhecidos já tiveram a terrível experiência de
ouvir uma de suas melodias acompanhadas do batuque da caixa de
fósforos pela metade (o cigarro, pelo bem da música, só é aceso
no isqueiro dos outros para não desafinar o instrumento).
Aqueles que se revoltam
contra as rimas óbvias e letras de gosto duvidoso são imediatamente
taxados de invejosos por esta curiosa espécie artística, aumentando
sua certeza de talento diante da incompreensão demonstrada pelo
mundo. Não há um só sambista indigente que, em defesa da qualidade
de sua própria obra, não seja capaz de jurar de pés juntos que já
foi plagiado pelo Jorge Aragão ou pelo Arlindo Cruz.
Por fim, aspecto muito
controverso sobre a espécie, defendido por uns e negado por outros,
é uma eventual e gradual evolução através das gerações para uma
outra, a dos funkeiros de youtube. Observar as interações entre os
indivíduos das duas espécies só aumenta a controvérsia científica
sobre a proximidade genética: eles se observam, se cheiram, se bicam
e se mordem, mas nada de se acasalarem.
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